Setembro de 2011. Abro os olhos e me dou conta de que estou em Kathmandu, no Nepal. Depois de mais de 24h de viajem, com quase 9h de diferença de fuso para o Brasil. Levanto, ainda meio grogue e cansado e vou tomar café da manhã. Olho o horário e percebo que estou atrasado e preciso seguir para rodoviária. Volto ao quarto, pego minha mochila. Confiro se está tudo certo e sigo andando para o local de partida do ônibus.
Já é o segundo dia no Nepal, no dia anterior rodei pelo bairro de Thamel comprando o resto das coisas que preciso para a caminhada. Comprei uma calça com fleece por dentro e um casaco de pena de ganso da “La Cara Nuerte” e um saco de dormir.
Chego ao ponto de partida do ônibus e é uma confusão, como tudo por aqui. Demoro para me entender e achar o ônibus que me levará a Jiri, de onde começarei a minha caminhada até o Acampamento Base do Everest. Depois de um tempinho perguntando e gesticulando acho o ônibus e já entro para não correr o risco de perder a viagem. O ônibus é pequeno, daqueles que vemos nos filmes. E tem uma música – que acho ser indiana – tocando alto. Outras pessoas começam a entrar no ônibus também, mas ele não chega a encher.
Meu destino é Jiri, uma cidade no sopé do Himalaia, que os turistas já não visitam muito, desde que construíram o temível aeroporto de Lukla. De Jiri até Lukla são 7 dias de caminhada. Comigo tudo tem que ser difícil, não posso me dar nenhum descanso.
O ônibus parte sem muito atraso. Nem cheio e nem vazio. Ele segue pelas ruas de trânsito caótico até chegar na periferia. Logo depois entra em uma estrada duplicada. Ele para em alguns pontos e outras pessoas vão entrando. Após algumas horas nesta estrada o ônibus está cheio. Começo a pensar nos relatos que tinha lido sobre essa viagem e penso que estavam exagerando nas situações.
O ônibus sai desta estrada principal e entra em uma estrada mais rural, ainda asfaltada, mas bem mais estreita. Em cada vilarejo o ônibus para e saem algumas pessoas e entram o dobro. O ônibus vai ficando mais cheio. A música continua bem alta e sem parar. Depois de mais algumas horas o ônibus para novamente. Todos os passageiros saem, menos eu. Estou atento, sem entender nada, mas a postos para qualquer coisa levantar também. Todas as pessoas – homens, mulheres, crianças, idosos – se dirigem para o mato. Cada um vai para um canto e se abaixam. Finalmente entendo o que está acontecendo, pausa para o xixi. Não tem banheiro no ônibus e a viagem é longa.
Depois que o último passageiro termina de se aliviar e entra no ônibus, seguimos viagem. Seguimos pelas estradas sinuosas, sempre subindo. Seguimos por um desfiladeiro do lado direito, em uma estrada que só passa um carro por vez. Um outro ônibus vem na direção oposta e pisca o farol, o nosso motorista pisca o farol de volta. E começa uma batalha, como nos duelos à cavalo da idade média. Momentos antes de um acidente, um dos motoristas desiste e vai para o acostamento, que fica do lado direito, onde tem o penhasco. Nesse primeiro embate o meu motorista perdeu e nós fomos para a direita, a toda velocidade, terra levantando do pneu. Eu que estou sentado do lado direito do ônibus, vejo tudo lá embaixo do penhasco. Termina o embate e o nosso motorista volta para a estrada. Percebo que todos os passageiros estão rindo no ônibus, e alguns segundos depois, percebo que eu sou o motivo das risadas. Não consegui ver a minha expressão de pavor, mas devia estar muito engraçada, pela intensidade com que riam. Eu sou o único estrangeiro no ônibus. Isso quebra o gelo com os passageiros e me sinto mais confortável.
A viagem segue com esses embates, a música alta, o ônibus cheio. Algumas comemorações quando o nosso motorista vence e não precisamos sair da estrada para o acostamento. Mais algumas horas de pessoas entrando e saindo nos pequenos vilarejos, até que chegamos a uma espécie de trânsito e o ônibus para. Depois de alguns momentos parados o motorista desce, vai até a frente, da fila de ônibus e carros, e volta. Fala algumas palavras, incompreensíveis para mim, e todos desembarcam, exceto eu claro. À nossa frente tem uma vendinha que só vai enchendo conforme o tempo passa e mais veículos vão chegando à fila.
Após alguns minutos ali, dentro do ônibus sozinho, resolvo descer também. Entendi que tinha algum problema. Ando de um lado para o outro observando as coisas. Percebo que sou o único estrangeiro por ali. Sigo até o início do engarrafamento e constato o que aconteceu: Um caminhão com problema está travando a rua toda, de um lado e de outro. Vai ser preciso esperar.
O caminhão está na diagonal, tombado para o lado esquerdo, escorado por algumas toras de madeira. Embaixo está um nepalês mexendo na mecânica do caminhão. Em volta, neste momento em que o engarrafamento dos 2 lados é imenso, tem centenas de nepaleses e acompanhando. Imagino que estejam dando palpite, pelos gestos e apontamento dos dedos. Um mecânico e centenas de entendedores tentam resolver o problema para seguirmos viagem. Volto para a venda que está perto do meu ônibus, não tenho nenhum interesse de perdê-lo de vista e ter que “me virar”, no Nepal.
Encosto em uma das paredes da vendinha, compro uma água e observo o movimento. Adoro estes momentos, de observar povos e culturas diferentes se relacionarem. De repente um jovem para na minha frente e arranha um inglês para falar comigo. Arranho um inglês de volta e começa uma espécie de conversa. Isto gera interesse em quem está pelo local e junta gente. O jovem vira intérprete. Uma pessoa pergunta alguma coisa, o jovem traduz, e eu respondo o que eu entendo da pergunta. O Jovem, por sua vez, traduz de volta para quem fez a pergunta, o que entendeu da minha resposta. Fico nessa conversa por um tempo, está divertido e o tempo passa mais rápido.
Algumas horas depois, ouço uma ovação de felicidade e todas as pessoas correm de volta para seus transportes. Rapidamente corro para o ônibus e volto para o meu lugar, com medo de perdê-lo. Todos sentam e começa uma série de manobras, pois o caminhão quebrado precisa avançar, ele está no sentido oposto ao nosso. Por sorte nós estamos bem próximos de onde o caminhão quebrou, isso faz com que sejamos um dos primeiros ônibus a seguir viagem.
A viagem segue bem travada no início, pois tem muitos ônibus no sentido contrário na fila e a estrada é estreita. Quando o nosso ônibus termina a fila contrária, o motorista sente que está atrasado e precisa adiantar a viagem. O ônibus vai super rápido. Ônibus cheio, andando rápido, música alta, motorista atrasado, mais piscadas de farol e embates. Viro a atração do ônibus, todos os olhos voltados para o gringo aterrorizado.
Eu já tive algumas experiências, sendo conduzido de forma irresponsável por motoristas de transporte coletivo. Quem mora no Rio de Janeiro e já pegou o ônibus 175 a noite, sabe do que estou falando. Já desci a serra de Visconde de Mauá em uma Kombi sem freio, com o motorista controlando no freio de mão. Já fui a Ibitipoca na chuva com o ônibus fazendo rally, atolando, tendo que ser empurrado, e por aí vai. Mas experiência igual a essa ainda não tinha passado.
Vou ficando desinteressante para os passageiros, meu terror vai perdendo a graça. O ônibus continua parando nos vilarejos. Algumas pessoas descem e muitas outras sobem. Em um vilarejo demoramos mais. Paramos ao lado de uma feira e muitos vendedores vêm vender coisas no ônibus. Todos os passageiros estão comprando, e eu estou com bastante fome. Vejo um vendedor de frutas, vejo algumas bananas. Negocio da melhor maneira e compro. Depois vejo uma espécie de melão. O melão tem algo vermelho em cima, todos estão comprando e fazendo cara de satisfação. Imagino que devam estar bem doce. Compro e dou uma mordida. Na hora descubro o que é o vermelho, pimenta. Mais risadas no ônibus. Bebo água e acabo com o melão, cada mordida um gole.
Me pergunto porque está demorando a saída e percebo que, como o ônibus está cheio, as pessoas estão subindo para o teto. algumas galinhas e cabras entram no ônibus pela janela. Alguns desses animais sobem em cordas para o teto, sendo puxados ao lado da minha janela. Após mais alguns minutos o ônibus segue.
O ônibus anda, para, desce gente e entra gente. Escurece e ainda não chegamos a Jiri. Estou muito cansado, mas mantenho os olhos atentos para saber quando vou precisar descer. Começa a chover. Estou viajando algumas semanas antes de começar a temporada de trekking, para pegar as trilhas mais vazias, mas ainda estou no final do período de monções, e a chuva é esperada.
Em algum horário, que não sei qual, eu já estou exausto e o ônibus finalmente para e desliga. Jiri é o ponto final e fico aliviado de estar no meu destino. Desço do ônibus e ainda chove. Faço uma pequena caminhada até a cidade e escolho um local para passar a noite. Por razões óbvias, não escolho muito. Tomo um bom banho, gelado. Sigo para o restaurante da pensão e como o meu primeiro Dal Bhat. Uma sopa de ervilha com arroz. E muita pimenta. Lá encontro os primeiros estrangeiros, um grupo de franceses. Trocamos algumas palavras em inglês e me dirijo para a cama, para um merecido sono, porque no dia seguinte começa a batalha para ver o Everest de perto.
***
Depois eu descobri que estava viajando no período de um importante festival Hindu do Nepal, o Dashain. Este festival é o mais importante do Nepal, ele dura 15 dias e celebra a vitória do bem sobre o mal. Neste período todos os nepaleses voltam para suas casas para celebrar com a família, por isso todo o caminho e os transportes estavam cheios. Me contaram que fora deste festival a viagem é mais tranquila. Eu viajei bem no meio do festival, que é o dia principal e onde ocorrem diversos sacrifícios animais, por isso as cabras e galinhas no ônibus.
Eu lembro que nessa noite eu dormi bem assustado com tudo que tinha acontecido. Uma viagem que era para durar 7/8h, levou 12/13h e fiquei pensando onde eu tinha me metido e o que me aguardava nas próximas semanas.