Fevereiro de 2018 e estou com a minha família em algum lugar no deserto do Atacama, entre a cidade de San Pedro do Atacama e a cidade de Jama na Argentina. Para onde olho só vejo areia, além de salares e vulcões à distância. Acabo de sair do Salar de Tara, onde andei mais de 160km seguindo apenas o rumo do GPS. Agora estou na estrada de novo e o 4×4 do carro não desengata. Tento de tudo e nada resolve.
Não é recomendável andar com o 4×4 acionado no asfalto, e nem em uma velocidade alta. Porém parado no deserto não dá para ficar, por isso decido ir bem devagar em direção a Argentina. É mais perto seguir nesta direção do que voltar para San Pedro. Pouquíssimos carros passam, em qualquer direção. A todo momento paro no acostamento e tento desengatar novamente o 4×4. Não entendo muito de 4×4, mas já rodei mais de 10.000km nessa viagem, desde a saída em Teresópolis e ele sempre funcionou, por isso sempre estive bem confiante no meu manejo. Vou seguindo devagar, até que ouço um grande estalo, paro novamente no acostamento e uma fumaça começa a sair do capô do carro, tento andar e a cada giro da roda acontece um estalo. Paro. Olho para minha esposa e vejo seus olhos arregalados, sua testa franzida e sua boca aberta, me sinto da mesma maneira. Estamos com um problema mecânico, no meio do deserto, com duas crianças e não temos ideia de como vamos sair dessa situação.
As crianças estão alheias ao que está acontecendo e brincam no banco de trás. Peço carona aos poucos carros que passam, mas todos estão com lotação máxima, e muita bagagem. Um ou outro para e diz que vai tentar mandar ajuda quando chegar em alguma cidade. O tempo vai passando e a ansiedade vai aumentando. Lembro do GPS e vejo que estou a 7km da fronteira, onde tem uma cidade, que pelo mapa, não é muito animadora, mas terão pessoas que poderão ajudar, desta forma não estaremos sozinhos. só precisamos descobrir um jeito de chegar até a fronteira.
As crianças vão ficando inquietas, eu e Fernanda tentamos entretê-las enquanto buscamos uma solução, tudo isso sem trazer a gravidade do fato à atenção delas. Fernanda sugere que eu vá andando até a fronteira para buscar ajuda, já que ninguém que passa pode nos ajudar. Eu penso sobre o assunto, mas fico relutante, pois deixar os 3 sozinhos na beira da estrada não é a melhor opção. Tentamos com afinco buscar uma outra solução, mas realmente não temos nenhuma que não dependa de nós mesmos. Vou me acostumando aos poucos com a ideia de deixá-los sozinhos, e a Fernanda constantemente me encoraja. como nada acontece ali parado, decido agir. Pego um casaco e me ponho a andar.
Enquanto me afasto do carro olho para trás, a todo momento, para ver como eles estão. Até que vem uma leve descida e eles desaparecem na paisagem. Ando o mais depressa que posso. Vou calculando o tempo que vou levar para chegar. Correndo eu faria em pouco menos de 1h, andando provavelmente em umas 2h ou mais. E tem a altitude, estamos acima de 4.000m, o ar rarefeito já dá seus sinais. Paro de pensar essas coisas e sigo caminhando, cabeça baixa e tentando acelerar. Olho o GPS para ver o meu progresso e percebo que não estou indo em uma boa velocidade. Tento, novamente, não pensar nisso e vou caminhando. Olho em volta e continuo não vendo nada além de areia e sal. Lembro das crianças sozinhas com a Fernanda, na beira do acostamento, no meio desse nada. Depois de um tempo que não consigo quantificar, quando tinha andando por volta de 4km, passou o primeiro carro, uma caminhonete. Pedi carona, estando sozinho imaginei que seria mais fácil que alguém me ajudasse. A caminhonete passa direto. Desanimo e continuo andando. Depois de um tempo a caminhonete volta e pergunta se o carro lá atrás com as crianças é meu e eu respondo que sim. Ele se oferece para me ajudar, pergunta algumas coisas e eu subo na caminhonete. Eles tem cabo de reboque e vamos rebocar o carro até a fronteira. Enquanto voltamos até o carro vamos conversando e ele me fala que só parou por ter visto as crianças no carro e elas acenaram para ele. As crianças salvaram o dia.
Chegamos de volta ao carro. Eu desço com o motorista, que por algum sinal divino, é mecânico de 4×4. Ele tenta entender o problema e chega a conclusão que foi a caixa do 4×4 e que se tirarmos a homocinética poderemos seguir nosso caminho. Amarramos o nosso carro à caminhonete. Um dos passageiros vai dirigindo a caminhonete. E eu, minha família e o mecânico vamos no meu carro com o mecânico na direção. Vamos conversando sobre os caminhos que já tínhamos percorrido, de onde vínhamos, e para onde íamos.
Ao chegar na fronteira, vimos uma fila de carros fazendo a aduana para cruzar para a Argentina. Paramos em um canto e o mecânico, prontamente, saiu para tentar arrumar uma ferramenta para nos ajudar. Mobilizamos alguns agente da aduana, que nos ajudaram com água para as crianças e outras coisas. Logo, o Mecânico volta com um macacão e entra debaixo do carro para tentar tirar a peça. Me sinto impotente por não saber o que fazer. Com a ferramenta que ele estava não foi possível tirar a peça, ele precisa de outra. Começamos a perguntar aos agentes se poderiam ajudar e nada, pergunto às pessoas que estão nos carros na fila, até que um dos carros nos oferece ajuda e nos empresa a ferramenta. O mecânico volta para baixo do carro, mas essa ainda não é a ideal. O parafuso está muito preso, portanto é necessário uma peça mais robusta. Chega o momento do amigo que emprestou a ferramenta fazer o trâmite aduaneiro e ele deixa a ferramenta para nós e segue seu caminho.
Andando de lá para cá na aduana, vimos uma fossa para carros. Conversamos com os agentes, que nos ajudaram prontamente. A fossa já é na Argentina e precisamos fazer os trâmites aduaneiros de dar a saída no Chile e a entrada na Argentina. Isso é feito em segundos com a ajuda desses agentes. Em menos de 20min o carro está na fossa e o mecânico embaixo do carro tentando tirar a peça. Depois de algumas horas, o mecânico, muito sem jeito, precisou seguir seu caminho. Expliquei a ele que ele já havia feito demais, e que não devia se preocupar. Ele já tinha tirado a gente do meio do nada, e só isso já tinha ajudado demais. Tento até recompensar ele, mas ele me diz que era só eu fazer o mesmo sempre que eu visse alguém precisando.
Conversando aqui e ali descobri onde ficam os caminhoneiros que estão esperando o processo aduaneiro, que muitas vezes leva mais de um dia. Me informaram onde teriam alguns caminhoneiros brasileiros que poderiam me ajudar com ferramentas. Segui até o local e encontrei alguns brasileiros descansando à sombra de seus caminhões. Na hora eles se prontificaram a ajudar. Fomos até o carro e olhamos o problema pela fossa. A missão é retirar a homocinética. Voltamos ao caminhão e eles não tinham a chave necessária, perguntamos a outros caminhoneiros e nada. Um caminheiro argentino se juntou a nós na busca por alguém que pudesse executar o serviço.
A esta altura a Fernanda e as crianças estão na loja de conveniência do posto YPF que tem por lá. Tem um sinal de wifi que permite mandar uma mensagem de texto, tem ar condicionado e algumas comidinhas para passar o tempo. Eu sigo na busca alguém para arrumar o carro. Neste momento estou só com o caminhoneiro argentino andando de um lado para outro das ruas de terra do vilarejo perguntando a todos onde podemos conseguir ajuda. Até que paramos em um trailer, com um argentino simpático e bigodudo que fala de um mecânico. Como o vilarejo é pequeno, a casa do mecânico é fácil de achar. Logo atrás do posto. Vamos até ela e descobrimos que o mecânico está resolvendo o problema de um carro em outra cidade e, só o filho adolescente está por lá. Tentamos pedir a ferramenta emprestada para finalmente conseguir fazer a extração da peça e seguir o nosso caminho, porém o rapaz está relutante em emprestar. Pergunto se ele consegue fazer a extração, ele diz que sim. Fecho um valor e volto para buscar o carro e levar para a casa dele, que também tem um fosso. Já são 20h, mas ainda está claro. O rapaz vai para baixo do carro e começa o trabalho. Fico de papo com o caminhoneiro argentino que ainda está por ali, me auxiliando. A peça está realmente difícil de tirar e o rapaz está sofrendo.
São 22h e começa a escurecer, as crianças estão muito cansadas e já arrumando um monte de confusão. Lembro que tem um hotel no posto e vamos ver de passar a noite por lá, porém o hotel já não tem mais quartos disponíveis. São apenas 2 quartos. Começa a saga de procurar um local para dormir. Na cidade só tem este hotel. Pergunto ao filho do mecânico onde poderíamos passar a noite e ele me informa que tem alguns quartos para alugar na casa dele. Vou olhar o quarto que ele, ainda, tem disponível. A casa é bem simples, entro pela sala, onde algumas pessoas conversam sentadas à mesa, passo por um corredor e chego ao quarto. É um quarto com 2 camas de casal e o banheiro é compartilhado. Fecho um valor e levo a Fernanda e as crianças para o quarto. Volto e ainda fico esperando e conversando com o filho do mecânico. Ele começa a ficar cansado e decidimos que é hora de encerrar. Marco de encontrá-lo novamente bem cedo para terminarmos o trabalho.
Entro no quarto e a Fernanda está igual Jesus Cristo com uma criança de cada lado, apoiadas nos braços abertos e esticados dela. Já estão dormindo e deito para dormir também. Em questão de segundos após fechar meus olhos, perco a consciência e entro no modo de descanso. Acordo com um barulho no meio da madrugada, e a Fernanda também está acordada. A porta do quarto não tem chave e um casal, que costuma se hospedar ali, está entrando no quarto. Eu e Fernanda damos um grito, dou um pulo da cama e vou na direção deles. Eles ficam assustados também, pedem desculpas e vão se retirando do quarto. Fecho a porta, puxo uma cômoda para a frente da porta e deito de novo. Não consigo mais entrar em sono profundo, até que vejo o dia clareando.
No horário combinado no dia anterior, saio do quarto e vou à procura do aprendiz de mecânico. Leva alguns minutos para ele acordar e aparecer. Ele volta ao trabalho e eu vou com a família tomar café na loja de conveniência do posto. Algumas horas depois volto ao carro e ele já conseguiu tirar uma das peças e está terminando de tirar a outra. Dou a boa notícia à família, que ainda está no posto e volto para observar o trabalho. Ele termina e fica super feliz. Eu também. Agradeço, me despeço, coloco a família no carro e seguimos em direção a San Salvador de Jujuy.
Saímos com o carro indo bem pela estrada, mas alguns quilômetros depois ouço o mesmo estalo que estávamos ouvindo antes e paro no acostamento. O problema não era a homocinética. Voltamos para a vila, muito devagar novamente e paramos no estacionamento do posto. Já está na hora do almoço e pegamos nosso fogareiro para cozinhar um almoço enquanto pensamos em como vamos resolver isso. Decidimos chamar um reboque para nos levar até San Salvador de Jujuy, e lá resolver o problema. San Salvador de Jujuy é uma cidade bem grande e, conseguiremos resolver por lá. Resolvemos chamar o reboque pelo seguro, já que é necessário fazer o seguro carta verde para rodar por estas bandas. Não temos sinal de celular e só conseguimos enviar mensagens de texto. Envolvemos minha sogra no circuito. Ela comunicando com o seguro por telefone e nós com ela por mensagem. Conversa vai, conversa vem. Fica decidido que o reboque vêm no dia seguinte pela manhã.
Vou ao hotel reservar um quarto para passarmos mais essa noite por lá e já estão, novamente, reservados. Converso com a Fernanda e ela não gosta da ideia de passar o susto que passamos na noite anterior com pessoas entrando no nosso quarto. Conversando com algumas pessoas, nos falam sobre a cidade de Susques, que fica a, aproximadamente, 100km de Jama. Começamos a buscar uma maneira de chegar em Susques, que tem hotel, restaurante e um pouco mais de infraestrutura. Não existem ônibus neste trajeto. Indicam uma pessoa para nos levar até a cidade. No horário combinado a pessoa chega e partimos. O carro não é muito novo, não tem um dos vidros na porta e um pano tenta fazer o papel de vidro. O motorista vê a oportunidade de viajar recebendo e levou a esposa e o filho, que estão no banco do carona. E nós 4, apertados no banco de trás. Chego a Susques após algumas horas. Procuro algumas opções de hotel, escolho um. Finalmente podemos descansar e, de fato, relaxar. Aprecio uma cerveja enquanto todos tomam banho e falamos com os familiares, agora com internet. Falo também com o seguro, para confirmar tudo.
Após o banho vou ao saguão do hotel entender como poderia chegar a Jama no horário indicado. Converso com o dono do hotel, quem me informa que não existem transportes regulares e a minha melhor aposta seria pegar carona em um caminhão. Diversos caminhoneiros param para descansar à beira da estrada, quando está anoitecendo. Não tendo muita escolha volto para o quarto, converso com a Fernanda e explico minha descoberta. Os caminhoneiros saem bem cedo, com o sol raiando para seguir viagem, então preciso estar bem cedo na estrada. Decido junto com a Fernanda que ela e as crianças ficam na cidade enquanto eu vou buscar o carro, e na volta paro aqui com o reboque para pegar eles e seguir para San Salvador de Jujuy. Com a cabeça mais tranquila dormimos sem preocupação.
Acordo 5h para ir até a estrada pegar carona. A cidade fica no meio de umas montanhas, com muitos cactos e o sol da manhã ilumina a areia e a deixa com uma cor avermelhada. Me sentindo confiante chego na estrada. Vários caminhões parados. Vou de um em um pedir carona. Só tem um detalhe, essa é a maneira como as pessoas que moram em Susques, e não tem carro, se locomovem. Por este motivo todos os caminhões já estão com caronas agendadas previamente. Começo a pedir para os caminhões que passam pela estrada, mas nenhum para. Já são 8h, eu preciso estar 10:30h em Jama, para receber o reboque. Percebo que uma outra pessoa também quer pegar carona, mas vê que eu estou na frente da fila e fica mais afastada, na entrada da cidade. Como o tempo está passando e nada acontece, decido conversar com a pessoa e entender como poderia pegar essa carona.
Meu novo amigo me explica que eu estou fazendo direito, mas que realmente não é fácil. Começo a tentar pegar carona com ele e nada. Conversando ele me explica que tem um amigo caminhoneiro que pode nos dar carona se chegarmos em um posto mais a frente na estrada, já sentido a Jama. Ele me fala que o amigo me levaria também. Decido que vamos juntos até o posto. Vejo uma caminhonete, das diversas minas que existem pela região, saindo da cidade e peço carona até o posto, eles aceitam, pois era no caminho deles. Subo na caminhonete e rapidamente avistamos o posto. Meu amigo dá uma olhada em volta e informa que o amigo dele já saiu. Agora estamos em um lugar mais difícil de conseguir carona e sozinhos. Antes da caminhonete ir embora ofereço o mesmo valor que paguei para o transporte que nos levou até Susques e o motorista aceita. Seguimos viagem com ele. Mais a frente ele nos informa que só vai ter que parar na mina, que tem no caminho, para deixar um equipamento. Fico um pouco desconfiado. Estamos há alguns quilômetros de Susques e bem distantes de Jama, no meio do nada. De repente ele começa a deixar a estrada e entrar em uma estrada de terra. Peço para que ele pare e informo que vamos ficar na estrada tentando pegar uma carona e quando ele voltar, se ainda estivermos ali, a grana é dele. Ele concorda, nós saímos e ele segue. Fico parado em um ponto de ônibus, no meio de deserto, com meu novo amigo. Ele me conta a história dele e eu a minha. Depois de algum tempo, não mais de 1h, passa um caminhão que nos dá carona. Chego em Jama por volta 13h. Quando chego no posto, começam a entrar as mensagens no celular. Procuro um reboque e nada, meu carro continua estacionado no mesmo lugar. Vou tomar uma água e olhar as mensagens. A Fernanda está me avisando que o reboque não vai chegar, que o seguro não conseguiu contato com nenhum.
Bate um desespero, uma vontade de acordar e ver que era tudo um sonho. Dar boas risadas e esquecer o sonho depois. Mas as coisas não se resolvem sozinhas. Eu em um lugar, sem ter como levar o carro, a Fernanda em outro com as crianças. E não tenho como fazer uma chamada para um reboque. Fico ali com meu amigo no posto, ele está esperando alguma carona que ajude ele a passar pela fronteira, pois está indo trabalhar no Chile. Nessa fronteira não se passa a pé, pois a distância sem nenhum apoio é grande. Lembro que no dia anterior uma pessoa me deu um cartão de um reboque, que acabei não usando pois estava conversando com o seguro. Espero parar um carro para abastecer no posto e peço o celular emprestado para ligar. A primeira pessoa que peço me empresta o celular sem nenhuma hesitação. A esta altura da viagem, já fazem 2 meses na estrada, meu portunhol é fluente e consigo me entender com qualquer pessoa, mas acho que eu entendo mais elas do que elas me entendem. A Fernanda fica sem graça com essa minha fluência. Consigo falar com o reboque e explico minha situação. O reboque fica em San Salvador de Jujuy, que fica a 300km de Jama e ele me informa que só pode chegar no dia seguinte, saindo hoje chegaria muito tarde aqui. Eu insisto muito e ele aceita me pegar ainda no mesmo dia, mas me fala que já vai chegar à noite. Digo que não tem problema. Consigo relaxar um pouco e dou a boa notícia a Fernanda. Agora já temos um grupo, meu amigo e diversos mochileiros, esperando carona. Fico com eles ouvindo suas histórias e contando as minhas. O tempo vai passando e, aos poucos todos vão conseguindo suas caronas e eu continuo por lá. Neste tempo a Fernanda conversa com o dono do hotel, que deixa que ela e as crianças saiam do quarto no momento que o reboque chegar sem cobrar mais uma diária. Enquanto espero, reservo um hotel pelo booking, e aviso que vai ser um checkin tarde e que estou com o carro quebrado.
De tempos em tempos eu paro alguém que está abastecendo para ligar para o reboque e confirmar se está tudo certo mesmo. Foi anoitecendo, o movimento foi diminuindo e só eu estou no posto, esperando. Em algum momento, que não lembro a hora, o reboque chegou. Colocamos o carro em cima e, aviso a Fernanda que estamos saindo. Aviso ao motorista que precisamos pegar minha família em Susques e ele me fala que não pode colocar 5 pessoas na boleia, pois tem muita fiscalização. Uma parte da estrada é a mesma que vêm da Bolívia, e tem muita fiscalização neste trecho. Nem deixo ele continuar falando e explico que não tem outra possibilidade. Acho que ele entende o meu lado, estou final do segundo dia de muita tensão, e abre uma exceção para que todos entrem no caminhão. Explico que se passarmos em alguma fiscalização, coloco as crianças para baixo do painel. Chegamos e Susques e a família já está esperando, pronta. Agradeço muito ao dono do hotel e seguimos nossos caminho.
2h da manhã chegamos em San Salvador de Jujuy. A primeira coisa que faço é parar em um banco e sacar o dinheiro para pagar o reboque, pois não tenho nada em espécie. Em seguida vamos para o hotel. O rapaz da recepção sai correndo de dentro do hotel na hora que vê o reboque e nos mostra onde parar. Ele segurou uma vaga para o meu carro na frente do hotel. Mais uma vez, uma ajuda inesperada sem querer nada em troca. O reboque coloca o carro na vaga, eu agradeço mais uma vez a disponibilidade do motorista, por ter feita essa missão de resgate. Entro no hotel e agradeço ao recepcionista pela delicadeza, subimos para o quarto, tomamos banho e cama.
Durmo até mais tarde, e acordo finalmente aliviado. Estou, com a família e o carro, em uma cidade grande, que pode dar um suporte, ou mesmo posso pegar um avião e voltar para casa. Após um café da manhã farto e muito bem aproveitado, começamos novamente a pensar em como resolver o problema. Agora com sinal de internet, ligo para o seguro e largo tudo que estava preso na garganta na pessoa que atendeu a ligação. Todos no setor, a par da minha situação, já passam diretamente para o supervisor a ligação, nem tentam dialogar comigo. O seguro, ainda de forma imprestável, oferece rebocar o carro até a fronteira com o Brasil, de lá trocar de reboque e mandar o carro para o Paraná. Mandar a gente para a fronteira, para fazer a entrada do carro no Brasil, e depois para casa. E, quando o carro ficasse pronto, eu ir para o Paraná buscar. Não achei a proposta razoável, conversei com o amigo da recepção, que ainda estava trabalhando, e ele indicou um mecânico que já havia trabalhado na oficina da marca do meu carro. Subo e marco com ele para o dia seguinte.
Na hora marcada o telefone do quarto toca e sou informado da chegada do mecânico. Desço e vou até o carro, ele não consegue detectar o problema somente olhando e precisa levar o carro para a oficina dele. Fico preocupado com meu carro sendo levado por uma pessoa que não conheço, e falo que ele pode levar, mas que eu vou junto. Ele concorda. Amarramos o carro no carro dele e vamos. A oficina é bem distante do centro, conforme nos afastamos fico preocupado com o caminho. Ligo meu GPS para marcar o caminho que estamos fazendo, para qualquer eventualidade. Em um lugar muito humilde, no fim de uma rua, que termina em um rio, tem uma garagem, que mais parece um ferro velho e entramos ali. Sigo preocupado com a situação, mas tudo muda no momento que entro na casa dele. Toda a família está tomando café da manhã e todos são muito solícitos comigo, colocam mais uma cadeira para eu me sentar e me oferecem tudo que tinha a mesa. Enquanto isso o mecânico vai testar o carro, eletronicamente, para descobrir o problema. Após alguns minutos de conversa muito agradável com a família, ele volta e me fala que o problema é no 4×4 dianteiro. Este carro tem 4×4 integral, ele sempre roda com tração nas 4 rodas. E a caixa dianteira está quebrada. ele vai retirar a peça e poderemos rodar sem problema, de volta para casa. O único detalhe é que o carro vai ficar com tração somente na traseira. Me despeço da família dele e ele me leva de volta para a cidade e me deixa em uma praça, onde a Fernanda está com as crianças.
Esta é a primeira noite tranquila em 4 dias. Nós sabemos que o carro vai ser arrumado e poderemos seguir viagem. O mecânico precisa de mais 1 dia para resolver o problema. Passo este dia conhecendo a cidade e me divertindo com a família. No dia seguinte ele nos entrega o carro e seguimos nossa viagem.
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Fiquei em contato com o mecânico por várias semanas, ele sempre procurando saber se estava tudo bem com a gente e com o carro. Troquei mensagens por muitas semanas também com o meu amigo de carona, ele chegou em Antofagasta e estava trabalhando no porto, com o primo dele. Apesar da situação complicada, não nos sentimos sozinhos, a todo momento fomos ajudados por pessoas incríveis que cruzaram nosso caminho. Voltamos para casa mudados, sabendo que o mundo ainda tem muita gente boa, ajudando sem ser notícia na televisão. Ficamos tão imersos em nós mesmos, em cidades em que todos estão imersos em si mesmos, que esquecemos de olhar para fora e observar se alguém precisa de uma mão. Quando nos colocamos em situações em que dependemos da ajuda dos outros é que percebemos que essas pessoas que ajudam são reais. De dentro da nossa zona de conforto, todos querem nos derrubar, e nós os outros.